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O diamante de Buritama: entrevista exclusiva com Aguinaldo Gonçalves por Anelito de Oliveira

Atualizado: 8 de nov. de 2021


Num dado momento, nosso entrevistado aqui recorda que, ainda jovem acadêmico na USP, ouviu de Antonio Candido: “isso, senhor Aguinaldo, é um pequeno ‘défaut’ para tão grande diamante”. Mestre Candido, que costumava tratar de Sr. ou Sra. até recém-saídos da adolescência e assim sutilmente os colocava num horizonte distinto, no qual a conduta intelectual responsável é fundamental, recorria à palavra original de Paul Valéry para acusar “um pequeno deslize na consciência crítica de quem ele gostava”. No caso do “Sr. Aguinaldo”, o deslize consistia numa “harmonia de espírito” que chega a conjugar “fatalidades inquestionáveis”, ponto de vista que parece mesmo inquestionável. O adjetivo “diamante”, todavia, despertou uma “alegria profunda” em Aguinaldo, um sentimento conservado por toda a vida.


Nascido em 1949 em Buritama, no interior paulista, Aguinaldo acaba de doar todo o seu acervo bibliográfico e pictórico àquela cidade, onde se inaugurou em agosto de 2021 uma Biblioteca e Pinacoteca “Prof. Dr. Aguinaldo Gonçalves” (assim se lê no convite divulgado). O espaço terá a nobre missão de preservar obras que, lidas e estudadas com extrema dedicação pelo Professor e Pesquisador hoje aposentado da UNESP, contribuíram para a lapidação da pedra bruta que todo indivíduo é, matéria-prima para que se apure diamante humano, um capital simbólico valioso. Esse capital, no caso de Aguinaldo, está materializado numa obra teórica pujante, da qual constam títulos que se tornaram referências fundamentais para os estudos literários no país, como o Laokoon revisitado, aprofundamento pioneiro do pressuposto horaciano sobre a semelhança entre pintura e poesia.


Aguinaldo Gonçalves entrou neste novo século numa nova “vibe”, assumindo explicitamente um lugar de criador de textos literários, de poeta e ficcionista, que surpreendeu e continua a surpreender até mesmo a quem já percebia na sua escrita teórica elementos criativos, nuances cognitivas que rasuram a discursividade científica e desvelam um mais-além subjetivante, imaginativo. Expectativas previsíveis de que Vermelho, seu primeiro livro de poemas publicado em 2000, poderia ser só coisa de teórico em férias ou poeta bissexto foram flagrantemente frustradas com a aparição de uma avalanche de livros de criação em duas décadas, um fluxo pulsante cuja característica mais notável é exatamente não apagar o teórico pujante, é transgredir as fronteiras entre o pensar e o poetar (dois trabalhos saíram no momento do fechamento desta entrevista, conforme Referências no final).


Esta entrevista, que contém intencionalmente fumos (diria Machado rsrs) de diálogo nas esferas, de fugas ao lugar comum meramente amistoso e não raro cínico, de travessia na diferença, foi realizada ao longo de um mês, da primeira quinzena de julho à primeira de agosto de 2021, via WhatsApp e Email, com o auxílio do Pesquisador da UNESP Fernando Guimarães Saves, Orientando de Aguinaldo, que hoje porta graves problemas de visão. Trata-se de conteúdo produzido exclusivamente para o número inaugural de SPHERA, sintonizado com os preceitos editoriais deste periódico, e daí a escolha tanto do entrevistado como a elaboração das perguntas, o foco estruturante em Cruz e Souza. Uma série de feitos e datas enreda a prosa, configurando o cenário pensante em que o entrevistado se desvela e revela, ainda que velando – o que às vezes investe a cena dialógica de certa dramaticidade, de clima de inquirição –, o “background” indeterminado, obnubilado, indecidível, afim do universo simbolista, portanto, da sua experiência de ser-dizer no mundo.



Aguinaldo Gonçalves


Da sua obra já vasta e bastante variada, consta um volume importante especialmente para quem está começando a estudar Cruz e Souza. Refiro-me ao seu Literatura comentada: Cruz e Souza, cuja primeira Edição pela Abril Cultural foi publicada há quase 40 anos, em 1982. Poderia recordar a produção desse trabalho? Que compreensão sobre o autor e a obra o Sr. quis “desenhar” nesse livro?

Em 1981, por critérios que não saberia definir, já havendo vários escritores escolhidos para a série “Literatura comentada”, a mim foi oferecido Cruz e Souza. Nunca me foi explicitado o motivo. Eu, no entanto, aceitei de pronto escrever sobre esse poeta maior, motivado também pela sua vida: filho de escravos, adotado por um casal de brancos ricos que deu a ele a possibilidade de estudar línguas e tantas outras coisas. É curioso e irônico que, hoje, indo a Santa Catarina, deparamo-nos com o Palácio Cruz e Souza, que confere ao Estado - que lhe tanto foi racista - um certo ar de importância. Sentado num banco em frente ao Palácio Cruz e Souza, em Florianópolis, por mais de uma vez, fiquei refletindo sobre essa ironia. Quanto ao trabalho que desenvolvi para a Coleção, é difícil comentar. Não foi só escolher os poemas que mais pudessem agradar, mas principalmente aqueles que mostrassem uma profusão significativa para o leitor, aficionado ou não pelo poeta, e para isso busquei textos que fossem relevantes. Ele é diferente de outros poetas simbolistas, como Alphonsus de Guimaraens, pois rompe com o didatismo do período simbolista. Há em Cruz e Souza uma mistura mítica e erótica que torna a poesia dele um processo imagético, de contrapontos entre claro x escuro, que chega a nos reportar a uma espécie de “barroco da poesia”. Veja bem: Cruz e Souza não é barroco, é um simbolista com forte apego musicalizante, mas com traços barrocos. É um verdadeiro poeta em cuja poesia predomina a função poética, diferente de muitos outros autores em cuja obra a função poética fica em segundo plano. Era muito jovem à época, mas lúcido, e foi importante o trabalho que recebi. Nunca mais voltei a trabalhar com Cruz e Souza formalmente, mas ele jamais saiu de mim. Hoje, noto alguns grandes estudiosos retomando Cruz e Souza; retomar talvez não seja a palavra certa, pois ele nunca deixou de figurar o grande cenário da Literatura.


Sua formação se deu num ambiente de intensa agitação política no país, os anos 1960 e 1970. Nesse ambiente, o desinteresse por uma poética subjetivante como a Simbolista era previsível. Como o Sr. conseguiu escapar a epistemes sociologizantes e manter o interesse por autores como Cruz e Souza e Marcel Proust?

Cruz e Souza sempre esteve entre os poetas e autores de minha predileção. Não posso, aqui, portanto, inventar uma resposta: ambos os autores são bastante díspares e foram trabalhados em circunstâncias diferentes. Eu não convivi com Cruz e Souza na década de 60 e 70, mas cheguei a ler a ele e a tantos outros. Em 68, terminava o “colégio”, em São José do Rio Preto, e muito jovem não compreendia ao certo o que acontecia neste país. É importante dizer aqui que só fui tomar consciência do Brasil e de mim tempos depois, em meio à faculdade. Quanto a Proust, folheando minha edição de Em busca do tempo perdido, encontrei os dizeres: “Acabo de ler Marcel Proust em 1971”. Houve, eu diria, um instinto de não-sei-onde, pois não tive orientação de ninguém, que me levou a Proust, que seria o autor estudado por mim em minha livre-docência anos e anos depois, em 1997. Como Proust caiu em minhas mãos eu não sei; acho que ganhei Em busca do tempo perdido de algum amigo que pensou ser a obra a minha cara (e ele acertou!). Depois disso, nunca mais abandonei Proust – é o autor com quem mais me identifico. Eu persigo Proust nas minhas andanças à França, revisito seu túmulo e sua poética. Sou um brasileiro de origem pobre, mas às vezes me sinto um aristocrata à moda proustiana: é um gosto subjetivo, mas ainda assim, como aponta Theodor Adorno, há uma ligação entre lírica e sociedade – a obra de Proust é universal e, partindo de um sujeito, atinge outros eus, para pensar em Fernando Pessoa. Infelizmente, poucas pessoas poderiam compreender se Proust é ou não subjetivante, pois, assim como James Joyce, o escritor francês é alguém a quem todos querem na estante, mas poucos de fato leem. Os próprios franceses me diziam “o senhor estuda aquele autor de parágrafos longos que não acabam nunca mais?”. Isto é, em qualquer lugar do mundo, até no berço de Proust, há quem incorra em falsa consciência, má compreensão da obra. No caso de Cruz e Souza, ele me chegou mais intimamente quando já estava em São Paulo, em meio à “revolução”, trabalhando na universidade e no Colégio Equipe, sendo este muito influente em minha vida. Lá, perdi colegas, fomos emboscados num jantar e tivemos de fugir para não sermos presos (e alguns o foram). Além dessa cena, vivenciei várias outras, lembro-me de cavalarias que me perseguiam na rua. Passei medo, sim. Sofri. Porém bem menos que alguns amigos presos e capturados após o AI-5. Finalizo dizendo, entretanto, que à época ainda era um leitor, não um escritor, então lidei bem com as pressões em relação às minhas escolhas de leitura.


Ainda falando sobre seu tempo de formação, parece-me evidente que como homem negro na cidade onde surge o Movimento Negro Unificado em 1978, puxado inclusive por acadêmicos da USP, como sociólogo e escritor Eduardo de Oliveira e Oliveira, em plena ditadura militar, o Sr. deve ter sentido "pressões" do lado de fora, da vida social, em razão de sua opção pela literatura que se volta para o lado de dentro, para o sujeito. Poderia nos falar sobre isso?

Eu queria, de verdade, poder polemizar mais esta resposta, mas em 1978 eu estava no quinto ano do meu mestrado (que era realizado em 7 ou 8 anos), e meu objeto de estudo era João Cabral de Melo Neto em analogia à pintura de Joan Miró, que resultou na minha defesa em 1980. A seguir, alguns anos depois, o estudo seria publicado na íntegra pela editora Iluminuras [Transição & permanência: Cabral e Miró); correu tudo muito bem, não sei como dizer isso, talvez vocês chamem de alienação, mas não houve interferência do momento político em relação ao meu estudo. Em outras esferas, como a profissional, eu passei, sim, por problema, como quando recebi um bilhete na porta da república onde morava - na rua Sílvia, em São Paulo - avisando que eu fugisse, pois seria cassado naquela noite. Durante esse período, João Cabral teve uma “querelle”, pois seu Morte e vida Severina estava sendo encenado no teatro. Portanto, como pessoa negra, não farei como o Pelé, não direi que não há racismo, pois há e muito, ainda mais no Brasil (quando estive pesquisador na África, muitos africanos me disseram que não viriam ao Brasil dado o racismo avassalador daqui); porém, estudando na USP uma temática que parecia não tangenciar “os tabus do Estado”, não fui repreendido em relação ao meu desenvolvimento crítico com a arte. Ele me raspou no dia a dia, no diz-que-diz, nos olhares. Antonio Candido, meu querido professor, na defesa de meu doutorado, disse que fui o primeiro negro a defender tese em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP e, por coincidência, minha defesa coincidiu com o dia da libertação escravista dos EUA, o que me foi muito forte. Só por esse evento, já percebemos o racismo estrutural até mesmo na universidade brasileira.


Para dar razão a Freud, em que medida a infância explica as escolhas teórico-críticas do homem Aguinaldo Gonçalves? Que recordações o Sr. preserva da relação inaugural com o mundo das letras? Certamente, teve uma infância de criança negra muito rara num país que aboliu oficialmente a escravatura apenas em 1888, 61 anos antes do seu nascimento em 1949.

Devo me apresentar na minha negritude, da qual tenho muito orgulho, e também comentar sobre minha miscigenação: uma avó africana, um avô português e, por parte de pai, um avô indígena, da Bahia. São as três raças fundadoras do Brasil, mas quando nasci era noite, e trouxe comigo com mais intensidade a marca da avó materna. Olhando meu olho, nota-se o “índio”, o formato do rosto, o “português”; o todo, o “negro”. Na minha casa, aliás, fui criado entre todas as cores, entre cinco irmãs, sendo eu o cavaleiro negro; dentre elas, inclusive, tenho uma irmã branca e de sardas. Isso traz consequências, é claro: às vezes, até dentro do lar, há o racismo - familiares, acreditando terem boas intenções, tentam nos esbranquiçar. Dentro disso tudo, minha relação com as letras foi bem bonita e começou com um poema longo que eu escrevi, aos dez anos, quando meu pai me levou para a roça querendo ensinar-me o ofício. Eu não tinha jeito para isso, e minha mãe e irmãs ficaram bravas com ele, dizendo que “o garoto frágil” não deveria ser levado para o arrozal. Lá, inventei uma desculpa para não trabalhar (disse que um formigueiro mordeu-me o pé), e meu pai, índio sensível, disse que não mais me levaria e recostou-me a uma grande árvore: ali escrevi meu primeiro poema. Meu pai ficou encantado e passou a dizer a todos que o filho era poeta, deveria escrever poesias em vez de ir para a roça. Introjetei isso e, quando fui para São José do Rio Preto, aos 14 anos, dei-me bem em todas as disciplinas, mas, inspirado pelas palavras de meu pai, optei por Letras ao terminar o “colégio”.


Quando o Sr. tinha 12 anos, em 1961, comemorou-se o centenário de Cruz e Souza, nascido em 1861. O crítico, músico, historiador e escritor curitibano Andrade Muricy publicou nesse ano a Obra completa de CS. Que recordação o Sr. tem de 1961?

Em 1961, não tenho recordação dessa natureza. Sequer sabia da comemoração do centenário de Cruz e Souza. Vim possuir sua obra completa anos depois. Aos 12 anos, estava na segunda série ginasial: era aquele garotinho careta, lá em Buritama, minha cidade natal, e cumpridor dos meus deveres, sofrendo com as aulas de ginásticas, as quais odiava. À parte isso, não posso dizer nada.


Falar de recordações é, naturalmente, chegar a Marcel Proust, que nasce precisamente 10 anos depois de Cruz e Souza, em 1871, também num ano ímpar! E é um autor que, ao lado de CS, também despertou seu interesse. Como se deu o seu encontro com a obra de Proust?

Sobre Proust, morrerei sem saber como ele se fez tão presente em minha vida. Um amigo achou que eu tivesse cara de Proust e cá estamos. Eu era jovem e esquisito, tinha volúpia de ler… quem for assim, lerá Proust e não parará mais. Eu até então lia coisas leves e até meio bobas, mas Deus foi pondo a mão (risos) e passei a afunilar meu gosto. No grupo educacional Equipe, ninho de tantos famosos, os professores de lá - perseguidos durante o Golpe Militar de 1964 - cobravam que eu lesse os latino-americanos (outros que não Borges ou Cortázar, que eu já lia) que fossem mais engajados. Em contrapartida, lia Thomas Mann, o que gerava certo desconforto em alguns colegas. Pensando bem, voltando a uma pergunta anterior, fui um pouco pressionado, sim (risos). No grupo Mackenzie, também tinha uma pressão em relação a uma leitura engajada.


O seu ensaio introdutório à edição brasileira de Contre Sainte-Beuve: notas sobre crítica e literatura, coletânea de textos de Marcel Proust em tradução de Haroldo Ramanzini revisada por Marilene Felinto que a Iluminuras publicou em 1988, abre-se com esta intenção: "É sobre um palimpsesto que trilharei, guiado pela convicção nas possibilidades de contribuir para as conquistas interiores do Homem frente a literatura, fazendo-o se aproximar um pouco mais da essência das coisas". O que essa passagem significa em relação ao seu modo de perceber a literatura em geral e a dos seus autores preferidos, em especial?

Esse texto rendeu a admiração de Milton Hatoum, que escreveu na revista “Leia”, que era editada à época, que Proust ficaria feliz em ler esse meu texto. Gosto muito de ter escrito isso, e o que eu disse lá continua sendo verdade, para mim, ainda hoje. A minha visão de Literatura está ali e vai de encontro à de outros pensadores, como o próprio Charles Baudelaire, o qual dizia que a crítica literária não deveria ser feita de isenção total, mas de paixão, com várias janelas que levem as pessoas a verem o mundo de um modo interessante. Lembro-me de que fui à Alemanha, para a feira de Frankfurt, como representante da editora Unesp, da qual fui conselheiro por muito tempo. Estava com um rapaz no metrô, indo para a feira, e ele todo feliz porque faria uma entrevista com autores brasileiros. Lá, ele tocou no nome de Paulo Coelho, e eu tive uma reação, ainda que na brincadeira, dizendo que valeria a pena entrevistar Lygia [Fagundes Telles] e Chico [Buarque], mas não Paulo Coelho. O jovem alemão cerrou os olhos, deu três passos para frente e não falou mais comigo e disse: a literatura tem várias janelas. Eu concordo, mas minhas janelas se abrem para horizontes muito distintos dos dele, creio eu. A literatura e a arte só têm sentido quando desobjetivam os valores cadavéricos do homem. A Literatura é um universo que deve mobilizar os elementos estatizantes do homem, enriquecendo-o, fazendo-o olhar para o porvir, para o outro sem preconceitos, dentro de uma relação elevada. Leio Literatura e faço Literatura com essa missão, por mais piegas que pareça - elevar o homem. A Literatura deve buscar a validade, não a verdade, pensando em Roland Barthes. A arte se conjuga a Aguinaldo, poderia passar horas falando sobre isso aqui.


Apesar de Proust ser seu "crush" absoluto, digamos, como já amplamente conhecido, o seu livro sobre ele só sai em 2004 - Museu movente: o signo da arte em Marcel Proust, publicado pela Editora da Unesp, ao qual voltaremos mais adiante. Antes o Sr. se dedica à exploração das relações entre poesia e pintura, de que resultaram obras de referência básica nos estudos literários contemporâneos, como o Laokon revisitado, publicado pela Edusp em 1994, e o já citado Transição & permanência. O que explica esse percurso pela Alemanha do século XVIII, escopo do primeiro trabalho, e pela poesia de João Cabral e a pintura de Miró, literatura brasileira e Surrealismo catalão, escopo do segundo livro, antes de chegar às suas "favorite things" proustianas?

As relações homológicas entre Literatura e artes plásticas surgiram na minha mente crítica durante as pesquisas de mestrado. Estava estudando João Cabral quando percebi as íntimas relações dessa poesia com a obra do pintor catalão Joan Miró. Daí em diante esses estudos só se aprofundaram e eles me acompanham até hoje. Há uma obra escrita e ainda não publicada denominada Prolegômenos aos estudos homológicos entre literatura e artes plásticas, em que organizo mais decisivamente essas questões relacionais, obra necessária por elucidar as distinções entre homologia e analogia nos estudos comparativos. Quanto a 2004 e à publicação do livro sobre Proust, deve-se notar que, naquele trabalho, as homologias nunca estiveram tão vivas, pois a obra anfíbia de Proust revelava profundas relações entre a Literatura e as artes plásticas. Portanto, não há uma trajetória, no sentido convencional do termo, na construção de meu pensamento crítico. Há um pensamento em permanente aclive no meu percurso. Acrescento que, no que diz respeito a João Cabral e Miró, o poeta brasileiro morou anos, como diplomata, na Espanha, transformando-a em seu segundo país. Lá, conheceu a obra de Joan Miró; quanto ao pintor, este ilustrou um livro de ensaios do poeta denominado Miró. Existia, pois, uma íntima relação estética entre os dois artistas.


Vamos por parte agora em relação aos três grandes momentos da sua atividade intensa de pesquisador das homologias entre signo verbal e signo visual, coisa literária e coisa pictórica. Sua primeira investigação desse problema teve como objeto a poesia de Cabral e a pintura de Miró. Quais foram os estímulos elementares desse processo? Nos anos 1970, Cabral não era a unanimidade que se tornou a partir dos anos 1990. Drummond era o poeta central. Miró também era ainda pouco valorizado por aqui naquele tempo; passou a despertar interesse em razão de Cabral. A "poesia pura", referência do Simbolismo mallarméano, e o Surrealismo até hoje são registros percebidos com certo descaso no Brasil. Enfim, cartas na mesa (rsrs).

Tudo aconteceu naquela tarde em que a epifania me levou a tomar um táxi, de bermuda e camisa rasgada nas costas, e dirigir-me à livraria Duas Cidades, em São Paulo, para a busca de um livro que me mostrasse pinturas de Joan Miró. Isso porque já estudava João Cabral, e meu aluno - Marcos Cartum, hoje arquiteto da cidade de São Paulo - chegou a minha casa com uma reprodução de um quadro de Miró. Ao olhar, instaurou-se o deslumbramento: vi, num instantâneo, a profunda relação entre uma obra plástica e outra poética. Descrever esse fenômeno levaria vários anos. Portanto, como se vê, o vislumbre teve natureza estético-semiótica e não veio do plano das ideias, mas de um plano mais profundo. Isso foi no ano de 1975. Vale lembrar que tive de enfrentar obstáculos absurdos para levar adiante esse projeto por preconceito cultural e ideológico de certos docentes da USP, mas tive a aprovação de quem era de direito meu orientador, João Alexandre Barbosa, que aplaudia sempre minhas manifestações de espírito e as minhas pioneiras inovações. No dia do exame de qualificação, tive de “ocultar” a obra de Miró, deixando-a sob a escrivaninha do meu orientador, pois corria o risco de ser reprovado por Ligia Chiappini Moraes Leite e Teresa Vara.


Sua segunda investigação sobre palavra e imagem, que culminou no citado Laokoon revisitado, foi estimulada, como o Sr. mesmo ressalta na abertura desse livro, por um livro que saiu nos Estados Unidos há 110 anos, em 1911: The New Laokoon: a essay on the confusion of arts [O novo Laokoon: um ensaio sobre a confusão das artes], de Irving Babbitt. O livro de Gotthold Efraim Lessing, Laokoon: oder Uber die Grenzen der Malerei und Poesie [Laokoon: ou sobre os limites entre a pintura e a poesia], publicado em 1766, é uma referência teórica europeia aproximada, portanto, de uma referência teórica norte-americana. O que este detalhe diz sobre o seu lugar na história, sobre o entrelugar, para recordar Silviano Santiago, do discurso latino-americano? O problema teórico tem ascendência sobre questões de ordem geográfica, econômica, ideológica e, especialmente, cultural?

Essa pergunta é a pergunta. Segundo Marjorie Perloff, se houvesse uma tradução de meu livro para o inglês, a história do estudo do “entreartes” seria diferente. Indo por partes, devo dizer que, depois do mestrado, a minha trajetória nos estudos das relações intersemióticas não poderia recuar. Muitos elementos que descobri no mestrado se agigantavam e precisavam ser solucionadas; tratava-se de uma questão essencialmente teórico-crítica. Daí iniciei uma perquirição de pesquisa ao longo da história. Não cabe aqui um exaustivo levantamento, só gostaria de relacionar que cheguei aos estudos teóricos de Leonardo da Vinci. Encontrei no século XVIII um verdadeiro manancial por pensadores de excelência que aquele século construiu, dentre eles Denis Diderot, Voltaire e Lessing. Em Lessing, percebi que meu barco encalhava: uma mistura de racionalidade, de inteligência e perspicácia conjugava o que mais me incomodava na relação entre Literatura e artes plásticas. Entretanto, na tese de Lessing, do livro Laokoon, com poder de argumentação exímio, ele defendia a separação entre o espaço na pintura e o tempo na poesia, mas, em notas de rodapé da versão espanhola, fui flagrando contradições mediante seu fascínio pelo tempo na pintura e o espaço na poesia. Porém, nessa obra que construiu numa única vez na vida em que o teatrólogo recebeu apoio de mecenas para escrever, Lessing reuniu forças para contrariar os erros crônicos de um outro alemão, J.J. Winckelmann, nos estudos das artes comparadas. Assim, para levar sua tese adiante, num texto que pode ser considerado moderno, Lessing conduziu seu pensamento até o ponto em que desviou a atenção do leitor com uma contradição brilhante por meio do conectivo “portanto”, que se opunha à afirmativa anterior. Ali ele conduziu sua tese ao engodo do pensamento crítico… e foi aí que eu entrei e iniciei o desenvolvimento fulcral de minha tese. É neste ponto em que me coloco e creio que, enquanto autor da tese, ainda não fui lido com o devido aprofundamento pelos estudiosos de minha obra. Com relação ao livro de Babbitt, de 1911, veio tardiamente para a minha tese e em nada colaborou com ela. Trata-se da obra The new Laokoon e daí o título da minha tese ser Laokoon revisitado. Imaginando que um norte-americano (assumo o preconceito) não poderia ter compreendido o argumento distorcido de Lessing (e eu ainda não havia concluído o trabalho), ousei deixar 3/4 de uma folha A4 para preenchê-la com o pensamento de Babbitt com o livro, que era esgotado. E assim aconteceu: um jovem casal, alunos meus, morando nos EUA, xerocou partes do livro em uma biblioteca de Boston e me enviou. Diria que o trabalho de Babbitt ainda é muito aquém de minhas expectativas, frágil e pouco reflexivo. Ocupei menos dos 3/4 da folha. Entretanto, ele foi de grande sucesso quando lançado nos EUA. Gostaria de ressaltar, aqui, uma obra de que me vali, também do século XVIII: de Jean-Baptiste Debos, escrita em 1740, contemporâneo de Diderot, Réflexions critiques sur la poésie et sur la peinture [Reflexões críticas sobre a poesia e sobre a pintura].


Finalmente, seu terceiro "tour de force" teórico mais conhecido, o livro Museu movente: o signo da arte em Proust. O dado central é o foco num só autor e outros dados correlatos são: o Século XIX, a França, a língua francesa, a literatura francesa. Tendências artístico-literárias do fim do XIX e início do XX também são dados importantes: o Simbolismo, o Impressionismo, o Dandismo, o Bovarismo, o Decadentismo etc. Poderia nos relatar como percebe a disposição dos signos no museu proustiano? Fale-nos um pouco também sobre o caráter movente desse museu.

Claro que o título do livro advém de uma contrariedade em relação à noção de “museu” como é considerado. Até mesmo no coloquialismo das relações, “museu” é tido negativamente com o sentido de estático e velho, estagnado, o que revela uma profunda ignorância, sobretudo nos países menos desenvolvidos. Vendo assim, a obra Em busca do tempo perdido, que já elucidei em outros momentos, é uma narrativa longa que na verdade vai mesclando o ato de narrar com o ato de “ensaiar”, no sentido de construir uma esfera crítica sobre o trabalho de invenção. Por isso, Proust constrói os três paradigmas alegóricos - da música, da pintura e da literatura - por meio de artistas imaginários. O autor francês quis ser um grande ensaísta, o que não lhe foi possível porque os desígnios o conduziram de maneira natural ao fluxo da narrativa e, por meio dela, à criação de um moto-perpétuo da humanidade e da condição humana. Dentro deste universo de profusão entre o narrativo e o crítico, a pintura ocupa lugar de destaque, mas ela vem enredada ao mundo das personagens, surgindo nas várias situações, das conversas, das situações dinâmicas da vida articulada nas suas feições humanas. Dessa forma, 55 artistas plásticos estão presentes na obra proustiana, criando, assim, os ditames de um museu, com seus estilos, suas obsessões, sua relevância para o mundo. Por isso, entendo a obra como um museu que se move fisicamente; o corpo do museu está no corpo dos sete volumes e é dessa forma que a significação das obras aparece. Trata-se de uma semiótica ambulante, não só pela presença dos artistas, mas também pela descrição de paisagens, de chafariz, de notas de viagem, de todos os entremeios estéticos e semióticos que compõem a obra.


Outro autor francês, nascido no mesmo ano de Proust, 1871, também vinculado ao Simbolismo, que também lhe interessa muito, é Paul Valéry, sobre o qual o Sr. escreveu um precioso texto que aparece como posfácio na edição brasileira de um volume das “Variétés" organizado por João Alexandre Barbosa e publicado pela Iluminuras em 1991, há 30 anos portanto, com traduções de Maiza Martins de Siqueira. Poderia nos falar sobre sua relação com a obra valéryana?

Para o professor Antonio Candido, existe em Aguinaldo Gonçalves uma espécie de “harmonia do espírito” que conjuga possíveis desencontros e harmoniza fatalidades inquestionáveis. Antonio Candido gostava de usar uma expressão quando via um pequeno deslize na consciência crítica de quem ele gostava (e ele dizia gostar de mim). Um dia, por ver um pequeno deslize de minha parte, ele me disse, citando Valéry: “isso, senhor Aguinaldo, é um pequeno ‘défaut’ para tão grande diamante”. Minha alegria profunda foi ser chamado de diamante pelo professor, e o fato de ele ter citado meu crítico favorito, Paul Valéry. Há entre mim e o poeta-crítico francês uma sintonia tão profunda que às vezes deixei de ler algo de Valéry por deduzir, pelo espírito, do que se tratava. Sobre o poético, é como se eu tivesse escrito a obra Souvenirs Poétiques (Recordações poéticas), obra não incluída nas publicações valéryanas. Ela é uma conferência dada em Bruxelas, em 1941, e foi anotada por um auditor. A concepção da falsa poesia e da verdadeira poesia, presente na obra, reflete-se por completo nas reflexões que desenvolvi num livro denominado Meandros divagantes da poesia ou sobre o processo de criação poética, que sai em breve pela editora Appris, do Paraná. Sinto-me perfeitamente sincronizado com o ensaio de Valéry “Poesia e pensamento abstrato” [in Variedades] e com toda a obra ensaística dele. Chego a dizer que sou mais envolvido com seus ensaios que com sua grande poesia, a não ser com “Cemitério marinho”, sobre o qual ainda me sinto em falta por não ter me debruçado para sobre ele escrever um ensaio crítico. Desculpe aqui não alongar muito, pois a interação entre nós é muito intensa, e a obra de Valéry é muito grande. Eu não pararia de responder nunca mais. Afora o posfácio ao livro Variedades, tenho um outro texto (artigo de jornal) publicado por O Estado de São Paulo, cujo nome me foge no momento, mas seria interessante ser resgatado. Para finalizar, a minha relação com o universo de Paul Valéry preenche as duas vertentes de sua realização como escritor na obra “Cemitério Marinho”: por um lado, trata-se do melhor poema que já li e com o qual volto a conviver de quando em quando; por outro, a descrição [que Valéry] faz do seu processo de criação no texto “Acerca do cemitério marinho”, no qual brilhantemente detalha o processo de construção [desse poema].


Impossível falar em Valéry no Brasil sem recordar João Alexandre Barbosa, seu Orientador, amigo e intercessor ao longo de décadas. Ninguém foi tão envolvido com Valéry no Brasil quanto ele, não é? Poderia rememorar suas relações acadêmicas, literárias e humanitárias com JAB? Como se conheceram? Qual o lugar que a perspectiva crítica dele, marcada pelo imanentismo do “Formalismo Russo” e do "New Criticism", ocupa no seu modo de pensar a literatura?

João Alexandre Barbosa foi um grande aficionado por Paul Valéry. Tanto é verdade que a editora Iluminuras me procurou para organizar o livro Variedades; consciente do amor de meu orientador pelo poeta francês, pedi que lhe fosse ofertada essa oportunidade, o que lhe foi um presente, pois Alexandre já havia selecionado textos e feito uma apresentação pensando na possibilidade de um dia publicar esse livro, pois estava muito difícil, por direitos autorais, a publicação de Valéry. O “Formalismo russo”, caminho que perscruto até hoje, chegou a mim antes de conhecer o meu orientador. Na verdade, traduzi - mesmo sem o domínio do francês - textos dos formalistas já no terceiro ano de Letras. O que João Alexandre Barbosa deixou a mim e a todos os seus orientandos foi o fascínio pela crítica poética.


A questão do método, que acabou por se tornar um aranzel ao longo da modernidade, encontrando seus paroxismos na pós-modernidade, ressalta-se na sua obra ensaística como uma espécie de legado racionalista que não advém efetivamente dos estudos literários brasileiros, muito movidos pelo empirismo, impressionismo, espontaneísmo etc. Como o Sr. caracteriza o seu método? Como esse método dialoga, especialmente, com métodos imanentistas, sociológicos e culturalistas?

Creio que a pergunta anterior sobre minha relação com Valéry responda isso, pois o que me deixa “pari passu” com o poeta francês é a visão racionalista da linguagem e da consciência crítica. Valéry teve como formação básica a física, que depois se reverteria para a linguagem. Eu ousaria dizer que meu constructo de inteligência se baseia na lógica, na matemática e na geometria – meus primeiros e afeitos prazeres. Daí meu método crítico, apesar de um serpentear barroco que me move, sempre se efetivar por uma lógica composicional dentro de um fluxo poético determinado pela imagem e pelos labirintos próprios dos simbolistas franceses e, do outro lado do oceano, por bifurcações convulsivas de Jorge Luís Borges. Entretanto, entre uma coisa e outra, essa conjunção apaixonada que me compõe entre a poesia que crio e o ensaio que me domina.


O estilo, o trabalho de escrita, ocupa um lugar fundamental na sua produção ensaística. O que um autor como Roland Barthes, com sua proposição de uma "critique écritture", significa para o Sr.? A estilização do texto crítico o equipara à criação literária? Qual o limite entre ciência da literatura e criação literária no seu ensaio?

Em primeiro lugar, eu assinaria 90% dos ensaios de Roland Barthes mediante a sagacidade, a percepção intersemiótica que conduzem o seu espírito. Gosto muito desse escritor de “escrituras”. O modo de Roland Barthes realizar o seu discurso torna desnecessária a leitura da maioria das obras literárias que ele analisa (risos). Nesse caso, a obra crítica se sobrepõe à ficcional. Por outro lado, há poetas que fazem da sua poesia um estatuto crítico mais completo do que a grande maioria dos teóricos. Penso em autores como Baudelaire, Mallarmé, Valéry, João Cabral, Carlos Drummond de Andrade, Octavio Paz, T.S. Eliot, para dizer o que elejo de mais genuíno. De modo geral, entendo que a verdadeira poesia crítica traz em si lições mais determinantes, porque, além de elevadas, elas têm de ser extraídas da imagem que faz e diz, concomitantemente. Quanto a mim, cito aqui o exemplo da obra Signos (em) cena que, quando estava sendo produzida, estive com meu amigo Arnaldo Antunes, no apartamento da escritora Alice Ruiz, em Curitiba, numa noite memorável. Trocando ideias, contei ao Arnaldo do fenômeno que estava ocorrendo, qual seja, a mútua relação da ideia que surgia nos ensaios que escrevia e das imagens que se construíam nos poemas. Os dois universos, para responder com estreiteza à pergunta, nasciam concomitantemente como gêmeos. “O que fazer?”, eu indagava. Foi então que o Arnaldo sugeriu que eu deixasse o fluxo das águas prosseguir e, terminado, publicasse duas faces do mesmo trabalho em um box… e foi o que fiz.


Falemos agora do Aguinaldo poeta, ficcionista. Ele se deu a ver em livro somente em 2000, no limite entre o velho século XX e o novo século XXI, com a publicação de Vermelho pela Ateliê. Por que demorou tanto? Fale-nos sobre o processo produtivo desse livro que abre uma nova temporada na sua jornada pelas letras.

O poeta esteve sempre em minha vida, desde a mais tenra infância, como já relatei em alguma resposta. Mas o destino quis que o crítico se apresentasse antes e, como crítico, fiquei conhecido. Passei a ter preocupações, receios da crítica que fariam ao meu trabalho poético. Isso me reteve e me contraiu, mas não me estagnou: convivia com amontoados de papel com poemas que escrevia dia e noite, mas não publicava. O que me levou a me assumir foi também um fluxo do destino. Orientando na universidade um poeta que precisava de apoio, chamado Silvio Paro, abri para ele um arquivo no meu computador, e tínhamos diálogos em que comentava e corrigia alguns de seus versos. Um dia, comecei a escrever para o Silvio como fazer poesia - igual a Rilke para o jovem poeta; desse serviço, numa manhã de maio, acordei e substituí o arquivo “Silvio Paro” por “Vermelho”. E foi assim que tudo começou. Francisco Costa, num artigo sobre o meu livro “Vermelho” publicado na revista Cult daquele ano, foi perceptivo ao dizer que esse primeiro livro parecia corresponder ao décimo primeiro livro, dada a sua maturidade e ousadia semióticas. Fiz, na primeira parte do livro, poemas parodísticos com poetas brasileiros de várias épocas. Essa atitude é dialógica e resgata para o livro de poemas o crítico que era. Foi assim.


São muitas as referências ao Simbolismo em Vermelho, desde a epígrafe de Valéry extraída do "Cemitière Marin" até poemas que dialogam com Baudelaire, Rimbaud e Cruz e Souza. Também temos ali diálogos com Safo, Catulo, Eliot, Proust, Bilac, Bandeira, Drummond, Cabral, Arnaldo Antunes e João Alexandre Barbosa - estes dois últimos assinam a apresentação e orelha do livro, respectivamente. O que explica, afinal, esse ajuntamento de tantas vozes? Qual é o lugar da voz de Cruz e Souza nesse concerto?

Na resposta anterior, eu já tentei esclarecer toda a primeira parte do livro Vermelho com poemas alusivos ou recriadores nesse processo de bricolagem poética, criando um verdadeiro mosaico constituído por poetas que vão desde a Antiguidade Clássica (Safo), chegando à literatura latina (Catulo) e dali para os grandes momentos da modernidade (Simbolismo e pós-simbolismo). Esse procedimento de que me vali veio de um sentimento intuitivo, mas decisivo para mostrar o meu gosto pelo poético (penso em [Immanuel] Kant), meu conhecimento crítico e meu comportamento inventivo, que trazia do clássico aquele conceito de Valéry, para quem clássica é aquela obra que traz em si um crítico. Nessa poesia crítica, estava, portanto, desde o primeiro livro publicado, inscrito o método crítico de Aguinaldo Gonçalves.


Em 2006, o Sr. dá continuidade à publicação de sua poesia com In abysmus, edição da Nankin. Ali o seu “método crítico” funciona de um modo sensivelmente diverso daquele de Vermelho, rasurando o literário em prol de um literal, chegando às raias do litoral lacaniano, desvelando apreensões muito viscerais de um sujeito que se sabe constructo de linguagem. O signo “agonia”, que aparece no “Poema a Baudelaire” de Vermelho, é recorrente em In abysmus. Poderia nos falar sobre o que esse signo representa na constituição do seu sujeito lírico especialmente, esse que se apresenta no poema¿

Não consigo, como poeta, responder a um traço provavelmente simbólico de um livro escrito há tantos anos, ainda mais – devo considerar – que tenha me sido surpreendente a reiteração desse signo, que já aparecera em Vermelho; não sabia disso. Provavelmente se trata de uma “obsession” poética presente no inconsciente e manifestada em meus versos. Devo ainda confessar que In Abysmus foi escrito como uma ária de uma ópera sintética, em parceria com um músico, Amaury Buchala, que mora na Europa. Portanto, esse livro possui singularidade da música e distingue-se dos demais livros de poemas que escrevi.


Ainda em In abysmos, vários poemas do segmento intitulado “Nas imediações do quase” abordam a pele de um modo que o sujeito social negro, com sua complexidade fanoniana (pele negra, máscaras brancas) pré-anunciada por Cruz e Souza, acaba se inscrevendo. Exemplos: “Minha pele é branca | e gélida em noite eterna”, “minha brancura é como se”, “e minha pele é branca | como alma vazia”. Há uma certa obsessão com os dois primeiros versos citados, que se repetem no segmento. Poderia nos falar um pouco sobre o lugar da poesia na expressão da sua experiência de ser negro¿

Não sei relacionar o fluxo de minha poesia com a minha condição de ser negro, pois minha experiência advém de um universo profundo do imaginário que não foi tomado por convenções sociais, mas é claro que esse imaginário é povoado por mitos e arquétipos que só o inconsciente saberia decifrar. Assim, a brancura, a alvura e a claridade, presentes no poema, reportam-se ao universo feminino da modernidade e da tradição, que compõe a alegoria deste livro. A primeira pessoa, revestida na pele branca, é da nudez própria dessa modernidade e, de maneira alguma, refere-se à cor da pele do poeta. Nesse sentido, há uma profunda dissensão entre o histórico do poeta e a íntima relação do sujeito lírico, que são plasmados nessa ária de ópera.


A unidade múltipla que constitui sua identidade, o ser que o Sr. mesmo é, diria Heidegger com sua analítica do “Dasein”, apareceu de modo ainda mais gritante em 2010 com a publicação dos dois volumes intitulados Signos (em) cena pela Ateliê, aos quais se referiu anteriormente, um com poemas e outro com ensaios. A obra se assemelha a um banquete sígnico, uma festa de índices, ícones e símbolos, fricção de elementos pictóricos – imagens de Sebastião Rodrigues -, teatrais, musicais e literários. Qual a “raison d´être”, afinal, dos vários Aguinaldos (o poeta, o crítico literário, o crítico de arte, o ficcionista, o pesquisador etc), o proto-sentido, digamos, da encenação sígnica¿


Farei desta resposta a pergunta inserta na voz de meu entrevistador. Aquela pluralidade de “eus”, mostrando uma panaceia semiótica, é exatamente o desenho que se forma no meu espírito; em vez de Signos (em) cena, o livro quase foi chamado de Teatro de Signos, devido ao perfil descrito por você. Só não aconteceu isso porque descobri um livro do poeta mexicano Octavio Paz com esse nome. Apesar de se tratar apenas de uma conjunção de textos de temática plural, preferi não correr o risco de parecer uma imitação do título de Octavio Paz. Claro que, no meu livro, existe uma inserção, sobretudo nos poemas, de todas as linguagens, inclusive da teatral. E nos ensaios, há, também, um “mix-happening” de lances, por isso anulei a questão bibliográfica e fiz dela mais um índice das setas indicadoras do próprio texto.


Os arabescos, lembrando Debussy, que nos enredam nos poemas de Signos (em) cena não obscurecem totalmente o vínculo entre sujeito e predicado, remetem de modo muito obliquo a uma substância memorial que adquire forma, que se configura como sentido, na movência incessante dos signos. Essa substância memorial, que dá a ver a sua existência em chave pontilhista, para aludir uma vez mais ao universo simbolista-impressionista, é o que o Sr. busca alcançar com um “gesto semiótico”, conforme se expressa na abertura do volume de Signos (em) cena que contém ensaios¿

O gesto interpretativo do qual você se valeu para realizar essa indagação deixou-me assaz alegre, provocando-me uma sensação de prazer; não o prazer dos cinco sentidos, que comporia a sensibilité de Kant, mas o prazer absoluto, que implica, além dos sentidos, percepção, sentimento e conhecimento, que significam, para Kant, a SENSIBILITÉ, consistindo essa no contorno do invisível para a construção do verdadeiro prazer estético. Por isso lhe digo que a questão das substâncias da memória pode ser considerada o ponto mais elevado do que você enunciou, seja no livro In Abysmus, seja no substrato e no arabesco quase materializados de Signos (em) cena, que me colocariam numa condição de elevação e de enlevação de um espírito como o de William Blake. Não conseguiria, no entanto, ter uma autoestima tão singular que pudesse ocupar um “pari passu” com o poeta inglês.


Os “plissements”, as dobraduras, dos poemas de Signos (em) cena velam e desvelam o homem e o poeta, de um modo que as dimensões da verdade e do engano, da “aletheia” e da “apathe”, confundem-se e circunscrevem uma espécie de núcleo inominável, o limite de um logos. A fertilidade desse processo criativo expõe seu estro simbolista, impressionista, de modo notável: “e pelo som da consciência, | que os atores se (des) mascarem.”, “e pelo som da consciência, | os atores se (des) mascaram,” “sulcos e fibras sulcos e fibras | ecos de vozes” e “sob o som do acordeon: | ignotas fontes da agonia”. O que a consequência desse “som da consciência”, o desmascaramento dos atores, nos diz sobre a interdição do horizonte simbolista na cultura literária brasileira dominada ainda pelo Modernismo urbano sudestino¿

Entendo que a maioria dos poemas que constroem Signos (em) cena se formam por signos e semi-símbolos que rasgam as cortinas e atuam literalmente como personagens de um teatro do absurdo e, portanto, dialético, no qual não consigo ver marcas tão fortes do Simbolismo que você insiste em aludir. Alegra-me, no entanto, pois na poesia simbolista, como diria Northrop Frye, a função poética acontece no núcleo do núcleo da função poética, o que me faz vibrar pelas tensões sonoras, pelas vibrações intensas que Debussy soube tão bem injetar na sua música e que nos remete aos sombreados impressionistas de Monet, de Whistler, de Pissarro. Talvez seja essa vaguidão etérea do poético que, como marteladas insistentes na linha de ferro da estação antiga, entrou em minha alma e nunca mais saiu.


Para suspendermos (concluir não é possível) a conversa sobre sua produção lírica e passarmos para uma rápida referência a sua prosa ficcional, falemos do seu Nove degraus para o esquecimento, belíssima edição da Ateliê de 2017 com ilustrações de Efigênia Helu, Geraldo Matos e Sebastião Rodrigues. Assim como em Vermelho, a interlocução com o Simbolismo francês é demarcada já de cara pela epígrafe extraída do “Cemitière marin”, mas agora seu estilete incide sobre o cenário, o entorno (“Ce toit tranquille, où marchent des colombes”), não sobre o sujeito (“O pour moi seul, à moi seul, en moi-même”), como naquele primeiro livro de verso. Mas se lá no início, em Vermelho, o júbilo era do objeto imediato, o visível, agora, em Nove degraus para o esquecimento, uma espécie de anti-júbilo, de estilhaçamento, é do sujeito. Poderia nos falar um pouco sobre a razão do caráter disforme, num contraponto irônico à perfeição formal do “Cemitière marin”, e agonístico, ressoando as “Elegias de Duíno” de Rilke, de Nove degraus para o esquecimento¿ “Esquecimento” é, como sabemos, um dos mais belos poemas dos Faróis de Cruz e Souza.

Esse livro, eu diria, praticamente não possui conexão com nada que produzi nos outros. Entendo que, do Simbolismo, só a coincidência do texto de Valéry, de que tanto gosto. Ele não está atrelado a nenhuma forma anteriormente construída; ele nasceu – e aqui revelo pelo apreço que tenho ao entrevistador – de um nada que meus dedos quiseram digitar de um só fôlego in illo tempore, pois não sei dizer quando foi escrito. Ele não deu sossego aos meus dedos; até o interpreto como um fôlego da imemorialidade. O que fica, no meu espírito, é uma imagem: os passos das columbinas no adro de um espaço calmo em que elas caminham em torno de si mesmas como se fossem as linhas no nonsense da própria condição humana.



Sua prosa ficcional tem nos chegado nos últimos anos com a mesma urgência da poesia, bem como a mesma intensidade e ambição de dar a ver qualidades próprias, numa contra-ofensiva à standartização que caracteriza a produção literária atualmente com seus lugares comuns identitaristas (classe, raça, gênero), por exemplo. Gostaria que nos falasse, em primeiro lugar, sobre sua estreia no gênero discursivo infantil em 2012 com Nina e Rosário, no qual aparece uma das qualidades da sua prosa, que é o acercamento à infância. Na sequência, fale-nos, por favor, sobre a relação entre escrita e memória, que caracteriza as coletâneas de narrativas curtas Das estampas e Coisas de casa, belíssimas edições da Nankin aparecidas em 2013 e 2016, respectivamente. Por último, como vê a questão da arte, que se confunde com o lugar não-institucional do artista, em face da fusão entre “epos” e “logos” que permeia seu gesto ficcional e aparece mais abertamente na coletânea Ozumanoides, também publicada pela Nankin em 2016¿

Posso, aqui, apenas esboçar algumas considerações sobre o gênero prosa dentro do meu trabalho de arte. Penso muito sobre as relações distintivas entre o verso e a prosa, e o aspecto que destaco é a circularidade, o sincretismo do poema e a natureza linear da prosa; esse linear não quer dizer superficial, mas caráter mimetizante entre o ato de escrever prosa ficcional e o ato de existir mesmo em textos em prosa extremamente poéticos, como é o caso de Guimarães Rosa e de Clarice Lispector; as palavras na prosa adquirem uma dimensão de grão grosso, em que cada sílaba deve ser devidamente encaixada, até mesmo para transmitir uma noção de referencialidade, como se vê no Neorrealismo, em Graciliano Ramos; escrevi esses poucos textos em prosa com grande acuidade, revelando, como o fizera Tolstoi, a sofreguidão da alma humana. Nesse conjunto de textos, você destacou dois que me chamaram a atenção: o infantil, Nina e Rosário, e o alegórico, Ozumanoides; o primeiro, escrevi para desafiar pessoas que não me imaginavam escrevendo uma obra para criança. Esse livro me deu uma imensa satisfação de público, e aprendi a dialogar com as crianças. Ele foi lançado num congresso internacional de literatura infantil, no Rio de Janeiro, e foi escolhido para ser comentado e discutido com 40 crianças. Depois, visitei escolas que me convidavam; numa delas, as cem crianças da cidade de Fernandópolis (SP) detectaram, na escola Anglo, doze isotopias do livro que não viriam à tona se se tratasse de um público adulto, embora o livro também seja lido e admirado por esse público. Creio que isso se dá pelo modo singelo que encontrei para alegorizar a morte; devo louvar nesse livro a relevância do pintor-ilustrador Renato Moriconi, que conseguiu acentuar poeticamente o valor da obra. O segundo, Ozumanoides, o menor livro adulto e narrativo que escrevi, não o imaginei publicado. Foi escrito em flashes, tomadas, uma espécie de ironia profunda da nossa condição e daí o título. É uma narrativa sem escrúpulos que vai mais fundo na mediocridade humana, na falta de senso, na idiotice que domina a maioria dos humanos. Essas narrativas geraram outras, como “Carta de Amor”, de Das Estampas, que se tornou, posteriormente, a novela publicada em formato e-book pela Amazon, com o nome de O cadarço vermelho. Foi dessas narrativas que surgiu um romance ainda não publicado, também homoafetivo, denominado Em outro país quando nossos braços se tocaram. No título, está inserida a expressão “Outro país”, fazendo menção escondida ao livro do escritor americano James Baldwin, Another Country [Terra estranha] onde se juntam negritude e homoafetividade.


O estilo proustiano que constitui praticamente uma metáfora edificante de sua escrita ficcional, bem como referência cognitiva dos seus movimentos de sentido na lírica, leva-nos a optar por colocar a abordagem do seu Museu movente: o signo da arte em Marcel Proust, à guisa de epílogo nesta entrevista. O livro resultou de sua tese de livre-docência na Unesp-São José do Rio Preto em 1997, e logo estamos nos aproximando dos 25 anos (2022) desse feito. Poderia nos falar sobre a defesa sutil da ascendência dos signos artísticos para a compreensão da realidade social, ponto de vista que atravessa sua argumentação¿ Qual o lugar que o apego a esse ponto de vista, em diálogo com o texto célebre de Gilles Deleuze, Proust et les signes, tem na sua biografia¿ O real da vida, afinal, se dispõe, para lembrar Riobaldo, é mesmo na travessia dos signos¿

Os sete volumes que compõem À la recherche du temps perdu movimentam um pêndulo que não cessa, e que enovela dentro de uma aparente linearidade, como se fosse o motor perpétuo que navega por mares indomáveis. É nessa palavra, indomável, que se instaura o ondear de um pensamento voltado para o crespo retalho de um estômago enjoado em mar aberto. A obra proustiana é singularidade, em essência, e navega com a perda, como diria Camões, do remo, mas que se encontra sempre no escoamento das marés. Aquele pêndulo é o que Valéry denominaria como o essencial na obra clássica. A obra de Proust é essa magistral conjunção de signos que constroem a ficção pelas vicissitudes humanas, pelas vertigens, pelos valores obtusos, pela aristocracia, pelas condições vulgares e sensíveis da condição humana; por outro lado, emerge a voz do crítico que traz para o seio das páginas a arte no seu alto padrão, em que teatro, música, pintura, escultura, monumentos, arquitetura e eventos culturais pululam com sofreguidão dentro de uma visão extremamente profissional e crítica de um estudioso erudito. Só quero dizer que acabo esta entrevista motivado ainda mais pelo signo da arte em Marcel Proust, que Gilles Deleuze denominaria o signo da arte e a essência.



Referências


Gonçalves, A. J. (1981). Literatura comentada: Cruz e Sousa. Organização Aguinaldo J. Gonçalves. São Paulo, Abril Cultural.

Proust, M. (1988). Contre Sainte-Beuve: notas sobre crítica e literatura. Tradução de Haroldo Ramanzini; revisão da tradução de Marilene Felinto. São Paulo, Iluminuras.

Gonçalves, A. J. (1991). Paul Valéry, o alquimista do espírito. Variedades. Organização de João Alexandre Barbosa; tradução de Maiza Martins de Siqueira. São Paulo, Iluminuras.

Gonçalves, A. J. (1994). Laokoon revisitado: relações homológicas entre texto e imagem. São Paulo, Edusp.

Gonçalves, A. (2000). Vermelho. Cotia, Ateliê Editorial.

Gonçalves, A. J. (2004). Museu movente: o signo da arte em Marcel Proust. São Paulo, Editora Unesp.

Gonçalves, A. (2006). In abysmos. São Paulo, Nankin Editorial.

Gonçalves, A. (2010). Signos (em) cena. 2 vols. Cotia, Ateliê Editorial.

Gonçalves, A. (2013). Das estampas. São Paulo, Nankin Editorial.

Gonçalves, A. (2016). Ozumanoides. São Paulo, Nankin Editorial.

Gonçalves, A. (2016). Coisas de casa. São Paulo, Nankin Editorial.

Gonçalves, A. J. (2017). Nove degraus para o esquecimento. Cotia, Nankin Editorial.

Gonçalves, A. (2021). Duo. Curitiba, Artêra.

Gonçalves, A. J. (2021). Meandros divagantes da poesia: ou sobre o processo de criação poética. Curitiba, Appris.

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